domingo, 5 de março de 2017

A IMUNIDADE DAS MULHERES

"O Processo" de Franz Kafka


"Em "O Processo", não há uma só mulher entre a horda espectral dos acusados. Sob um disfarce enigmático, as mulheres são mensageiras ou servidoras da lei (prostitutas do templo?). A sua evidente imunidade no que respeita à prisão e à acusação é uma marca de inocência maculada, de inferioridade em relação aos próprios homens sobre os quais exercem diversas formas de autoridade sexual. Ainda mais sinistro é o desejo colectivo manifestado pelas jovens que enxameiam como harpias em redor do estúdio do pintor Titorelli. Na língua alemã, a palavra "pássaros" confunde-se com a palavra "fornicar".

"Paixão intacta" (George Steiner)

Se Kafka se insere numa "relação singular de clarividência face ao desumano", os seus enigmas são a forma paradoxal de obrigar a linguagem a trair-se, a levar-nos à revelação, através do desconcerto e do riso. Do riso com que ele lia a "Metamorfose" aos seus amigos.

É de crer que o desumano, ou melhor ainda, o não-humano, seja o principal dessa revelação de que a linguagem nos protege. A intuição kafkiana, ao identificar o sexo com a lei, atribuindo às mulheres, no seu mais famoso romance, a função de prostitutas do templo, como sugere Steiner, é não só maquiavélica, como nos faz pensar também no que seria a "política", não confinada à cidade dos homens mas ampliada a toda a Criação.

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