terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A CAMISA DE NESSUS




Hannah Arendt costumava responder aos que se preocupavam com o seu excesso tabagístico e o seu ritmo de trabalho, que não ia começar a viver para a sua saúde.

É a recusa do "cadáver adiado que procria" do poema de Pessoa. A ideia de um plano ou de uma cadeia de montagem de que fazemos parte inconscientemente e que tem 'objectivos a cumprir', quer queiramos, quer não.

Mas, levando mais longe essa recusa, por que deveríamos viver para qualquer outra coisa? Arendt viveria para a filosofia e talvez achasse que para tirar maior partido  da sua inteligência precisava dum estimulante como o tabaco e de viver em permanente 'stress'. Pode ser. Mas nunca vamos directamente para o que nos destrói. Pelo caminho há o declive e a perfusão.  Ela que crismou a  'banalidade do mal', sabia que o hábito se nos cola à pele. É arriscado falar em escolhas.

Viver para a saúde é decerto diferente de viver com saúde. Mas Héracles, depois de vestir a camisa de Nessus, viu a sua carne incendiar-se e já não pôde arrancar a veste do corpo. Nessa altura, o herói resignou-se a morrer. Foi o seu último trabalho, o de desfazer-se do 'hábito'.

0 comentários: