"Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
(Fernando Pessoa)
A presunção deste pôr em dúvida! Como se fosse preciso um certificado de uma autoridade qualquer (no caso, poética) para reconhecer que a ceifeira quando se julga feliz, é feliz de facto.
Equivale a desapossar o 'pobre' (não é por acaso que se trata de uma trabalhadora do campo) do sentimento da própria realidade. Ela, cantando, ulga-se feliz, 'talvez', mas o poeta do desassossego vê mais longe.
Ele que não é 'romancista russo' não se deixa impressionar (Pessoa é tudo menos impressionista) pelo 'humanitário'. É tudo ilusão ou logro. Por isso podia repetir uma expressão em voga como: "para esse peditório já dei." Mesmo o aforismo popular "quem canta seus males espanta" não lhe merece qualquer crédito (a ele que escreve para 'espantar' outros males). O seu 'ennui' tem de estender-se sobre a paisagem, levando todas as cores consigo.
É outro 'toque de Midas' semeando conformismo e tristeza. O moinho de Salazar há-de receber toda essa água...
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