terça-feira, 22 de julho de 2014

NOITE ANTIQUÍSSIMA

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"Assim, tudo o que se passa nas noites de lua tem o carácter do que não se reproduzirá mais, o carácter do que é maior do que a natureza, da generosidade e do desprendimento desinteressados. Tudo aquilo de que nos fazemos parte nasce de uma partilha sem reserva. Dar, é de cada vez receber. Toda a concepção e a embriaguez da noite estão intimamente entrelaçadas. Só esse estado permite aceder à consciência do acontecimento. Nessas noites, o Eu não retém nada em si próprio, nenhuma condensação do seu ter, dificilmente uma recordação; o Si-mesmo exaltado irradia num esquecimento infinito de si próprio. E essas noites impõem-vos o sentimento absurdo de que vai passar-se qualquer coisa de inaudito, uma dessas coisas que a razão diurna, empobrecida, a custo seria capaz de imaginar. Não é a boca que delira, mas entre as trevas da terra e a luz do céu, o corpo é tomado de uma febre que vibra entre duas constelações. O sussurro do diálogo transborda de uma sensualidade completamente desconhecida, que não é a sensualidade de uma pessoa, mas a das coisas da terra, de tudo o que força à sensibilidade: a súbita ternura desvelada de um mundo que nunca cessa de tocar os nossos sentidos e de ser tocada por eles."


"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)


A razão diurna empobrecida, que expressão admirável! Contudo, a noite traz consigo o medo primordiai, os fantasmas da imaginação. Mas eles são os monstros que nas lendas antigas guardavam a entrada do Céu e do Inferno. Vencidos, toda a nossa percepção muda radicalmente.


As pessoas, em geral, fogem de situações como esta. Agarram-se à sua rotina, ao seu mundo pré-fabricado. Tapam as frinchas das janelas e das portas para não entrar a angústia. A angústia de estarem sós consigo mesmas, a angústia de estar sobre a terra escurecida sem um néon por perto. Mas, às vezes, o pânico instala-se na própria lâmpada, como num filme de David Lynch.


O intenso pressentimento da terra. É contra ele que trabalha afanosamente, a razão diurna. A imagem mais reveladora é a que nos transmite o facto de, em muitas cidades, a palavra noite ter sido apropriada para significar a espécie de vida 'nocturna' a que, hoje, nenhum jovem que se preze se quer subtrair.


A Grande Presença está sempre vigilante e como que triste por não lhe dedicarmos um pensamento. A pior censura não é a que nos impede de falar, mas a que nos 'põe a falar'. Dizia Pasolini, por outras palavras.

 

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