quinta-feira, 1 de maio de 2008

UMA FEIRA DO LIVRO


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A feira do livro é um lugar comum. Sirvo-me dele numa conversação difícil com um habitante da televisão. Mas ele não faltou ao encontro. Uma vez por ano, a cultura assume a forma tipográfica. A julgar as profecias e as estatísticas não valia a pena levantar os stands. É remar contra a maré. Empresas como o “Círculo de Leitores” já não apostam na brochura. Dirigem-se ao tacto e ao sentido da decoração. Não digo que uma capa atraente e modular não convide à leitura e ao prazer de abrir e de folhear. Mas estas moscas não se caçam assim. A principal função do livro-móvel é preencher um espaço no interior burguês. No fundo, é indiferente que em vez das páginas escritas se guarde aí o whisky.

A colecção é outro método de desviar o livro da leitura e de fazer subir as vendas. Os comerciantes pensam como bons linguistas que não se pode dizer que se tem uma coisa que não está completa. Que significam as receitas de culinária, opiparamente fotografadas, que se mandam encadernar periodicamente? É impossível que sejam todas úteis. Obter os números que faltam é um desporto, fechar a série é um acto moral. Não é honesto constituir-se proprietário do que está para além das posses de cada um. Esta dificuldade raramente é económica. O comprador está à mercê da vontade de prolongar um monólogo que a casa editora converteu em obrigação. A cultura ou a cozinha é uma questão de títulos, como se a biblioteca se acrescentasse ao nome próprio. O coleccionador é um burguês gentil-homem que se dispensou de começar sequer a imitação. E assim ele reage como um homem do nosso tempo, livre do encargo da cultura, graças à sobre-humana tarefa enciclopédica.

Como não se pode ler tudo e menos ainda assimilar, o melhor é transformar o escrito em segurança – estou rodeado de obras-primas e de sumas científicas – e num espaço de jogo: posso escolher ao acaso e fazer bingo. De resto, nunca é uma leitura determinada apenas pelo que se lê. O que é impossível ler pela profusão e pela falta de tempo é sentido, pelo leitor que tem à mão esses títulos, como uma extensão do seu poder caprichoso. A única maneira de gozar todo o campo do escrito, sem sentir os limites materiais evidentes da leitura, é fazer como a borboleta. As técnicas de venda e os novos media criaram o leitor superficial, sem vontade nem meios para colher dos livros a formação do espírito. Se não fosse a escola, a atenção seria uma coisa rara. Porque é preciso escolher e seguir um caminho.

Não se sabe ler senão relendo, e é sempre a mesma coisa que se lê. A abundância do livro rouba-nos a atenção. É possível que a televisão faça o leitor impaciente e sem ponto de vista moral. Quando era adolescente queria comprar tudo. Agora passeio os olhos pelos escaparates e não vejo nada do que quero. A feira quer vender e consegue. O que à partida estaria condenado ao malogro é um relativo sucesso. A tradição e o mito da cultura ou do móvel culto criam o acontecimento. Mas ler não é fácil. Ainda que a política e a profissão exijam um certo tipo de leitura. Mas quem volta a ler o que já leu?

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