segunda-feira, 31 de julho de 2017

EPÍSTOLAS

(S. Paulo escreve as suas Epístolas)



Duas pessoas podem sofrer de não poderem trocar correspondência. A distância existe, mas não é geográfica. Porém, o carteiro seria um enviado dos deuses. O amor pode ser soprado na nossa orelha e é assim que as mais das vezes a imaginação é apanhada, tão fácil é a um terceiro modelar com as suas palavras a imagem que temos do outro. Porque quando temos a impressão de ser mais livres e de seguir menos uma regra exterior, é quando precisamos mais de razões para nos decidirmos.

Talvez que verdadeiramente ninguém seja lógico quando escolhe o par. E que exista já nessa escolha um desejo de obediência a um princípio superior à nossa vontade, mas que não se quer assumir. O alcoviteiro bem pode ser o que põe o peso numa balança que não quer matéria. Ele liberta-nos do medo de fazermos o próprio destino e de sermos responsáveis por todos os males futuros. O oráculo põe fim à falta de coragem. Não é a beleza a espécie de consenso que o amor procura? Amamos mais a opinião do que o que é perfeito. E pela mesma razão de há pouco: é preciso dizer eu quero, mas também saber por que quero.

A escolha dum companheiro é demasiado grave para não ser pensada. Mas pensar o quê? Tudo é arbitrário antes de ser. Como julgar o que ainda não é? Porque é a união que é necessário julgar. E a opinião dos outros, mesmo quando é o culto da beleza feminina, é o único pensamento disponível e criador.

Como funciona a literatura epistolar? A carta pode fazer o amor? Quem escreve dá-se a ver, mas quem nos escreve na linguagem amorosa, que é abandono do mundo e existência para nós, quer ver uma única pessoa. Assim solicitada, a nossa experiência infantil impede-nos de ver no outro um simples objecto de escolha abstracta. Procuramos a leitura maternal, em vez duma evidência socialmente instituída. Eis por que a correspondência é sempre demasiado lisonjeira para o amoroso.

E nada prova, antes pelo contrário, que seja possível actualizar a literatura no amor da presença. A carta pode despertar o amor sem dúvida, mas como fazer permanentemente distância à beira do amante? Porém, o desejo, passado o que mantém a palavra, é precisamente um jogo e uma distância artificial que, todavia, não sabe inspirar a paixão da literatura. É o tempo da amizade ou das cinzas.

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