domingo, 18 de setembro de 2011

O INFERNO



Este Inferno de autor anónimo do século XVI, que se encontra no Museu de Arte Antiga, em Lisboa, representa uma ideia do horror ainda ingénua, para dizer assim. Não concebe o sanguinolento, o "gore" dos filmes modernos, nem a dissolução das formas de que o modelo da tetralogia de "Alien" fez um uso modelar, neste tempo de medos virais, de poluição e de contaminação. O corpo torturado está inteiro, não se derrama nem se liquefaz. É como se devesse conservar a forma para uma nova reencarnação e um novo ciclo de punição.

Cada um dos demónios tem o papel de funcionário do seu instrumento e são todos mais apagados do que os corpos dos condenados. O próprio Satanás é uma figura insignificante que mal sobressai da sombra.

A ideia que dá esta pintura é a de mostrar a "carne" e a sua capacidade de se auto-destruir, sem influências externas, o que é o contrário do que ensina Spinoza que diz, por outras palavras, que cada ser é perfeito até encontrar a causa exterior que o destrua. Para não considerarmos isto absurdo, devemos ter em conta que o ser individual é, como alguém disse, a superfície da espécie ( e esta, por sua vez...).

O que é curioso é que o objecto da tortura, aqui, seja a boca ou a cabeça. Nada de sexual nesta parafernália terrorista. Ao supliciar a carne, mas deixando-a intacta, visa-se o pensamento. Diferentemente dos nossos medos de hoje que são mais físicos ( o que não quer dizer que os possamos sempre definir) do que metafísicos, os homens de Quinhentos, a julgar, por este retábulo, eram ensinados a temer o desvio de opinião. Para os poderes obterem o conformismo tinham de recorrer às práticas mais violentas para deixar uma marca na imaginação das gentes. Nisso, atingimos o cume do "menor esforço": moldando os espíritos pela gestão de massas. Os hábitos privados em vez de serem impostos são naturalmente adoptados, graças ao fascínio da tecnologia e, como se sabe, atrás dos hábitos ou dos ritos vêm as crenças.

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