sábado, 26 de maio de 2007

AO VOLANTE


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Apenas a massa das árvores de cada lado da estrada, a cem à hora, falávamos de como ia ser a reunião. O condutor, sempre tenso e reagindo agressivamente aos faróis altos e às traseiras de alguma camioneta pachorrenta, era credor de todas as atenções da nossa parte. Se fumasse, seria preciso chegar-lhe o lume. E pode dizer-se que em qualquer dos casos é disso que se trata. A estrada é uma preocupação sua, que retém os seus olhos longe da conversação, na fita de macadame, nos sinais de perigo. E todos os volantes são mais ou menos susceptíveis: uma palavra da companhia, aconselhando ou chamando a atenção, é literalmente castradora.

Já se disse tudo sobre o automóvel como símbolo fálico. Em raras situações, existe um domínio tão forte sobre a afectividade dos outros. O veículo cobre-nos como uma parede de vidro. Homem e máquina no mesmo impulso pulverizam todos os outros interesses e a sociedade só é possível aquém da velocidade e do risco evidente. Mas sempre o que conduz é o menos livre. E há assuntos que são verdadeiras onomatopeias da voz humana e da presença lúcida. Uma discussão pode levar ao desastre.

O chamado “lugar do morto” é além disso uma função ingrata. Não é só o corpo que se oferece ao “trabalho” do outro – posição feminina e mais, da viúva hindu, que deve ser queimada com o defunto, a atitude da direita do volante é um índice sentido imediatamente pela psicologia do eu. É como uma extensão carnal, proeza da velocidade. Mas a fala deste lugar é cativa. Fala para o boneco, como se diz. Nunca a conversação desce a um nível tão mecânico e perde assim o próprio conteúdo. O condutor amarrado ao seu posto não deve perder a noção da realidade. É a situação do bebé ao contrário. Canta-se para adormecer. Aqui, para afastar o sono.

Por isso gosto dum terceiro. É possível então representar para o relais da máquina. A contradição nasce facilmente entre três pessoas e a necessidade mecânica de falar recebe assim um estímulo continuado. Nessa noite, um preguiçoso sentou-se no lugar do morto e deixou-nos falar. O terceiro é também o irresponsável, e nada me agrada mais do que esse papel, num carro em movimento. O interlocutor real de cada um de nós nessa situação é o macadame e o tráfico inteligente. É por isso que os mais alegres viajantes são comentadores dos objectos sem rosto que fazem as peripécias da viagem. Como nos flippers. A poesia são os monstros parados de olhos vermelhos na berma para comer.

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