terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

DEPRAVAÇÃO

Agustina Bessa-Luís

 

É Agustina que diz dos corações de boa memória que são depravados ("A Muralha"). Porque a memória é já um programa, um cálculo dos riscos. Já tentei, consegui uma vez, posso repetir. Os profissionais nem precisam de envolver o coração, e, às vezes, é quando os seus actos atingem a maior eficácia.

Mas não é destes que a escritora fala. Será antes dos insinceros que sugerem estar a viver uma experiência nova, a entrar no desconhecido, que parecem improvisar quando a caixa do ponto está sempre presente.

Don Juan é o símbolo dessa depravação. A memória do seu catálago acompanha-o para onde quer que vá. A flor da beleza murcha antes de que possa tocá-la. Repete-se como um histrião que ri de si próprio por detrás da máscara. A sua perversidade alimenta-se da acumulação, como o dinheiro.

Note-se que a memória de Don Juan é tudo menos 'poética', ela não recria o passado, perdendo-se nesse processo, como acontece com a maior parte de nós. A maldição do sedutor está nessa inconvertibilidade da memória. Está na sua odiosa fidelidade.

 

 

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