sábado, 29 de outubro de 2011

O ABISMO




"O rapaz, Leonard Bast, mantinha-se no extremo da 'educação'. Não estava no abismo, mas podia vê-lo, e, às vezes, pessoas que ele conhecia caíam nele e já não contavam para nada. Sabia que era pobre e admitia-o até:  preferia morrer a confessar qualquer inferioridade em relação aos ricos. Isto podia ser esplêndido para si. Mas ele era inferior a muitos ricos, não havia dúvidas sobre isso. Não era tão cortês como a média dos ricos, nem tão inteligente, tão saudável, ou tão amável. (...) Se tivesse vivido alguns séculos atrás nas coloridas civilizações do passado, teria um estatuto definido, o seu nível e o seu rendimento teriam correspondido. Mas, no seu tempo, o anjo da Democracia erguera-se, ensombrando as classes com asas coreáceas e proclamando: 'Todos os homens são iguais - todos os homens quer dizer, que tenham um guarda-chuva', e por isso ele era obrigado a afirmar a sua educação, para não deslizar no abismo em que nada conta, e onde as proclamações da Democracia são inaudíveis."


"Howards End" (E.M. Forster)




A Democracia já não é a "novidade" que era no século XIX e, por experiência, quase todos sabem o que quer dizer a igualdade que promete.

Continuando a ser o pior dos regimes, "excepto todos os outros", se pouco mais adiantou à igualdade na questão dos guarda-chuvas, também acabou com os abismos da sociedade vitoriana. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde, nos últimos tempos, mais do que nunca se escavou a  desigualdade, acredita-se "duro como ferro" que o "último dos homens" pode chegar a presidente ou tornar-se um colosso da indústria (se bem que mais recentemente seja mais plausível falar de finança e especulação bolsista do que em indústria). Nada de abismos que o valor individual e a graça de Deus não possam ultrapassar.

Por isso, já muito poucos têm a temer a queda num abismo sem direito a voto e que não esteja debaixo das "asas coreáceas" a que se refere E.M.Foster.

Pensando bem, gente como o Leonard Bast, pertencia ao tempo da boa consciência dos privilégios. Ele segurava-se às ervas para não cair no abismo, para não deixar de ser "igual" aos ricos.

Hoje, felizmente, temos menos areia nos olhos, e os mais ricos sabem que, também para eles, a Democracia é o que Churchill disse dela.

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