sábado, 2 de janeiro de 2010

A ARCA DE MARCEL



"Quando eu era criança, nenhuma personagem bíblica me parecia mais lastimável que Noé, devido ao dilúvio que o manteve preso na Arca durante 40 dias. Mais tarde era frequente adoecer e também eu tive de permanecer dentro de uma 'Arca' durante dias sem fim. Foi nessa altura que percebi que Noé nunca teria sido capaz de ver o mundo tão bem como da Arca, apesar de esta estar completamente fechada e de ser noite na terra."

Marcel Proust (in "Como Pode Proust Mudar a Sua Vida" de Alain de Botton)


A "Arca" não é, pois, um ponto elevado de observação. E o mundo de que fala Proust não pode ser o dos companheiros de quarentena. É o mundo dos ausentes, que se tornam pensamento e que podemos, enfim, "compreender", isto é, tornar uma criação do nosso espírito, sem lugar para a imprevisibilidade e para o profundamente outro.

Proust na "Arca" vê-se como o Narrador da sua viagem à volta do Passado, e todo o sentido que ele consegue dar à existência das suas personagens depende de ter fechado o Tempo.

Marguerite Duras dizia que o escritor escreve por nada ter já a perder. Proust levou para a sua Arca toda a experiência duma mundanidade que já não queria.

Quando a pomba branca anunciar o fim do dilúvio, estes seres inteligíveis que são os heróis da "Recherche" povoarão a terra.


0 comentários: