sábado, 26 de maio de 2012

O ZERO E O INFINITO

 




"O camponês tinha enterrado as suas colheitas; foi no princípio da colectivização da terra. Observei estritamente a etiqueta prescrita. Expliquei-lhe, amigavelmente, que precisávamos do trigo para alimentar a crescente população da cidade e para exportar, de modo a construirmos as nossas indústrias; portanto, não me quereria ele dizer, por favor, onde tinha escondido as suas colheitas.

O camponês tinha a cabeça enfiada nos ombros quando o trouxeram para a sala, à espera de uma tareia. Conhecia a sua espécie; eu próprio nasci no campo. Quando, em vez de lhe bater, comecei a arrazoar com ele, a falar-lhe como a um igual e a chamar-lhe cidadão, ele tomou-me por um atrasado mental. Vi-o nos seus olhos. Falei-lhe durante meia hora. Nunca abriu a boca e, alternadamente, coçava o nariz ou as orelhas. Continuei a falar, embora visse que ele considerava o caso uma enorme anedota e nem sequer estava a ouvir. Os argumentos simplesmente não penetravam nos seus ouvidos. Estavam bloqueados pela cera de séculos de paralisia mental patriacal. Segui estritamente o regulamento; nunca me ocorreu que existissem outros métodos..."



"Darkness at noon" (Arthur Koestler)



Tony Judt diz que não eram as vítimas que interessavam Koestler, mas a maneira como funcionava a mente comunista.

O relato transcrito pertence a Gletkin, um comunista da velha guarda que sofreu a eficácia dos tais outros métodos (pensa que teria cedido se não tivesse perdido os sentidos antes da vela sobre o seu crânio rapado ter chegado ao fim).

Mas devemos tomar a sua "inocência" pelo que realmente é. Os meios extremos não foram concebidos de início, quando era possível uma ignorância tão completa da realidade e uma tão absurda confiança nos argumentos racionais. Em face dos problemas mais urgentes, Staline não era homem para dar "um passo atrás", como fez Lenine. E quando o poder se concentra assim nas mãos de um só, o carácter desse indivíduo e até os seus humores acrescentam às forças de destruição.

A candura de Gletkin, ao lidar com a "experiência" do 'kulak', não podia ser o método indicado, porque "o tempo estava fora dos seus gonzos" e a Revolução não podia parar. Os dados do problema já não se compadeciam com o idealismo e os revolucionários foram os primeiros a trair os ideais. A sua sobrevivência tinha passado a identificar-se com a manutenção do poder. É neste processo que a sinceridade se torna cinismo.

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