segunda-feira, 19 de março de 2007

A PAIXÃO DA ESCRITA



"E assim a beleza da vida, palavra de algum modo desprovida de significação, estádio situado aquèm da arte e no qual eu vi Swann deter-se, era aquele a que, através do amortecimento do génio criador, da idolatria das formas que o tinham favorecido, do desejo do menor esforço, um Elstir devia um dia retrogradar."

"À l'ombre des jeunes filles en fleurs" (Marcel Proust)


Como estamos longe aqui de uma teoria da inspiração que desse ao artista a capacidade mediúnica de se exprimir pelos deuses! O génio seria assim algo de exterior que lhe ocuparia o espírito sem o conformar, como um rio que não modificasse as suas margens.

O percurso de Marcel Proust é o contrário disso, a começar pelas primeiras tentativas de crítica literária e, a crer na confissão do narrador, as dolorosas dúvidas e o adiamento recorrente da obra, até à definitiva clausura para se deixar sangrar em escrita, na imobilidade prenhe e alucinada de uma fêmea a quem o tempo e as forças podiam faltar, antes de trazer à luz o novo ser.

Opõem-se então nesta passagem o hedonismo do diletante e a ética do parto.

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