domingo, 30 de janeiro de 2011

O OLHAR QUE SE VÊ A SI MESMO

Ulisses


“A capacidade de controlo (sophrosýne), a habilidade no auto-domínio, a agudeza do olhar, a sobriedade na escolha dos meios adequados para atingir o fim: tudo isso liberta o espírito das forças e dá a ilusão que nós as utilizamos, sem que elas nos utilizem. E é uma ilusão eficaz que se vê muitas vezes confirmada. O olhar tornou-se indiferente e lúcido em relação a tudo, pronto a agarrar qualquer ocasião e a tirar dela vantagem. Mas neste olhar circular, permanece uma mancha negra, um ponto que o olhar não vê: ele mesmo. O olhar não vê o olhar. Não se reconhece como uma força idêntica àquelas que, agora, pretende dominar.”

“Les noces de Cadmos et Harmonie” (Roberto Calasso)



Arjuna, no “Bhagavad Gîta”, é o contrário do Ajax de Homero. Ele  não quer combater, apesar da guerra ser justa (segundo Krishna), pois reconhece nos adversários uma parte de si mesmo. Não sente a força e só se decide depois de uma longa argumentação com Krishna, movido pela ideia do dever.

Na luta deseja vencer, mas sempre com o deus.”, diz o pai a Ajax e este responde: “Pai, com os deuses, mesmo um homem sem préstimo pode alcançar a vitória; quanto a mim, estou convencido de adquirir a glória mesmo sem eles.”

Sabe-se qual foi o castigo de Atena (“a força que ajuda o olhar a ver-se a si mesmo”- Calasso). Ajax enlouqueceu e, julgando derrotar um exército sozinho, massacrou um rebanho de carneiros, numa antecipação do “ingenioso hidalgo de La Mancha”, arremetendo contra os moinhos de vento.

A força ilude-nos sempre, porque não nos conhecemos, nem sabemos por quanto tempo nos “pertence”. “E é aqui que se abre a diferença entre Ulisses e um herói tão ingénuo e insolente  como Ajax. Para Ulisses, a presença de Atena é a duma conversação secreta e incessante. (…) Ele sabe que não deve esperar, de todas as vezes, o esplendor deslumbrante da epifania. Atena pode ser um mendigo ou um velho amigo. É a presença protectora.” (ibidem)

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