quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A ALTURA DOS MORTOS

Herberto Helder


“Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo,
procuro colocar-me num ponto irradiante
da terra, olhar de frente
com toda a inspiração do meu passado, e estar
à altura dos mortos, na zona
esplêndida e vasta
da sua nobreza - receber essa espécie de força
indestrutível
que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias,
de que as rosas bebem o jeito aéreo e a boca
a delicadeza misteriosa.”


“Elegia Múltipla” (Herberto Helder)


Os Cristãos de outros tempos acreditavam num mundo depois deste, para onde iam aqueles que nos deixam. Nada se perde nesta passagem, a não ser o que o hinduísmo, por exemplo, sempre considerou uma ilusão. Mas é uma ilusão que Aquiles não troca por realeza nenhuma no Hades.

Por um lado, pois, perde-se tudo, ou é apenas memória dos vivos, mas, por outro, o que sempre fomos continua. O poeta fala numa nobreza dos mortos e de querer estar à sua altura.

Passamos a vida a construir uma pessoa ou uma personagem, trabalho com muito de teatral, com gambiarras e maquilhagem, mas toda a sabedoria das religiões e da filosofia nos diz que o essencial não está nisso, e que só na medida em que deixamos de olhar pela ranhura da máscara, como se tivéssemos de vencer todas as perspectivas, é que vemos realmente o mundo.

Dos mortos o que vive é o impessoal. Mesmo o anedotário de certas vidas é apenas para nossa edificação, mas os mortos nunca estiveram aí. Estar à altura dos mortos é, assim, ter ultrapassado os mitos, o mito do Juízo Final, por exemplo, e por um momento fazer parte da “comunidade dos justos”. Porque só a pessoa é justa ou injusta.

Como recomenda Alain, o método para compreender a religião (ou um filósofo) não é partir do princípio de que é falsa, mas o de inquirir de que modo ela é verdadeira. Aí, tudo é simbólico, e os factos ou as palavras que, no dizer do poeta, não morrem noutro nome, não têm entrada.

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