domingo, 9 de maio de 2010

A VISTA DE DELFT


"Vista de Delft" (Jan Vermeer)


"Estava morto. Morto para sempre? Quem pode dizê-lo. Decerto que as experiências espíritas não mais que os dogmas religiosos são incapazes de provar que a alma subsiste. O que se pode dizer é que tudo se passa na nossa vida como se entrássemos nela com um fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não há nenhuma razão nas nossas condições de vida sobre a terra para sermos obrigados a fazer o bem, a ser delicados, mesmo a ser polidos, nem para o artista ateu se crer obrigado a recomeçar vinte vezes um trecho do qual toda a admiração que possa vir a suscitar pouco importará ao seu corpo comido pelos vermes, como o pano de muro amarelo que com tanta ciência e refinamento pintou um artista para sempre desconhecido e quase só identificado sob o nome de Ver Meer."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


A "Vista de Delft" de Vermeer, emprestada pelo museu de Haia, levou um Bergotte moribundo ao Louvre. O ensaio geral desta morte no romance foi a visita do mesmo Proust a essa exposição umas semanas antes. O seu estado de espírito era o mais fúnebre possível, conforme se pode ler nas linhas que escreveu a uma amiga: "Indo, enfim, um pouco melhor, saí no outro dia ao fim da tarde, em condições para crer que a minha morte seria o fait divers do dia seguinte entre os cães atropelados."

A espécie de imortalidade que alcançam os grandes artistas decerto que não diz nada ao esqueleto na Divisão 85 do Père-Lachaise. E o "fardo de obrigações" carregou-o Proust pelo menos nos últimos dez anos de vida até à exaustão.

É curioso que tenha recorrido ao platonismo para explicar a sua estranha paixão, quando a celebridade e a perpetuação da memória podiam ser motivos suficientes, como eram para os contemporâneos de Platão.

Mas talvez que só o recurso a uma vida anterior estivesse à altura do sacrifício do artista, transcendendo a própria história e elevando esse sacrifício a uma essência desconhecida.

1 comentários:

João Esteves disse...

Encontrei por mero acaso este blog, o Persona. Altamente produtivo, traz postagens muito interessantes e em grande profusão.