sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O ESPÍRITO E A CARNE


"A festa de Babette" (1987-Gabriel Axel)



Nesse maravilhoso filme de Gabriel Axel, "A festa de Babette" (1987), a refugiada (Stéphane Audran), ignorado chef do Café des Anglais, em Paris, recebida como criada pelas filhas do pastor protestante duma vilória da Jutlândia, converte um prémio da lotaria num jantar nunca visto, que oferece à comunidade de velhos fiéis na festa do centenário do pastor. Martina (Birgitte Federspiel) e Philippa (Bodil Kjer) (em honra de Martinho Lutero e do seu biógrafo e amigo Philip Melanchthon), sacrificaram o amor terreno à via estreita apontada pelo falecido pai.

É quando a visão, na cozinha, da tartaruga que fará a famosa sopa louvada pelo general (o bergmaniano Jarl Kulle ) provoca em Martina um pesadelo de cedência ao demónio da carne que a leva a obter dos fiéis a promessa de comerem, mas sem qualquer prazer, o que for que Babette lhes apresente.

Mas nessa espantosa ceia, como diz o general, num emocionado discurso, o físico e o espiritual confundem-se, tal é o nível da dádiva e da arte da cozinheira. No final, a congregação, na sua euforia, esquece as quezílias e o espírito mau que os afastava uns dos outros.

Não se pode deixar de admirar a ideia duma astúcia do Amor, fintando com a arte de viver francesa, a vigilância desses espíritos perdidos no seu labirinto e fazendo neles entrar a virtude essencial da caridade.

Um ou dois erros de casting, se se pode dizer assim (o general é o mesmo actor que fazia de tio da personagem - talvez se queira com isso dizer que o velho tinha cometido os mesmos erros do jovem; as filhas do pastor, envelhecidas, parecem ter trocado de aparência física: os olhos azuis, tão expressivos de Martina deviam pertencer, de facto, à sua irmã) não chegam para prejudicar esta obra-prima vinda do país de Dreyer.


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