sábado, 27 de outubro de 2007

O RELÓGIO VAIDOSO


O coelho de Alice



Por que é a vida insuportável quando se define? Quando reduzo, por exemplo, o meu dia ao trabalho e à leitura? Subitamente, o encanto de conversar à noite e nas horas vagas com os grandes autores desfaz-se. E a outra parte da minha vida activa torna-se pesada por falta de compensação. Contudo, regressar depois de sete horas de rotina mecânica, ao convívio do espírito é o que o homem de bem, como diria Montaigne, mais pode desejar.

A felicidade é invisível e não se pode pensar nela sem que fuja. O erro é crer que o tempo livre é uma preparação para o trabalho e mais nada. Levamos no corpo e na alma uma pancada tesa ao aplicarmo-nos a uma tarefa sem interesse, submetendo-nos a um ritmo artificial que deixa mossa. O resto do tempo é de descompressão. A forma humana recupera para novo embate. A ideia deste vaivém é que é mortal. Faz de nós um pêndulo absurdo. O futuro parece não poder escapar a esta lei oscilatória, e a vontade humana não é mais do que uma mola entre outras, de que se conhece perfeitamente a função. Mas é uma vaidade triste que nos faz pensar assim.

Condenamo-nos a viver nos estreitos limites duma servidão que não compreendemos. O trabalho que se vive como uma prisão é degradante e não pode deixar de infectar a vida das pessoas com o espírito da frivolidade e da violência inútil. Por muito abstracta que seja a tarefa e separada das funções naturais, há sempre um aspecto que é digno de contemplação e de amor misterioso. E isso é a longa cadeia do trabalho, que liga o passado e o presente de todos os homens, os vivos e os mortos, às outras espécies e à natureza. O edifício de vidro com as suas secretárias e os seus telefones e o complexo sistema de papéis, apesar do luxo e das despesas supérfluas, não é menos a colmeia dum trabalho quase imóvel e cerebral. Mas esta solidariedade de todos os órgãos económicos conhece os seus fantasmas.

A habilidade das mãos do escriturário é inútil como a cauda que já não temos. O corpo mais perfeito da criação sobra em cada trabalhador. Já não é necessário. O que nos leva a dizer que agora é preciso querer esse corpo. Salvá-lo como a coluna sublime das civilizações. Mas não é o trabalho económico que o pode fazer. É o tempo livre e são outros trabalhos. Cultura física, expressão admirável. E por aqui chego à causa daquela tristeza que é falta de ginástica e força por empregar, juventude para viver. Mas também vaidade, como dizia. A de julgar o universo e de tomar como dinheiro contado a aparência do saber.

Para quê dividir o tempo? Ao escrever uma linha rotineira, o que me obriga a dormir? Recusemos a voz interior da demagogia que nos quer dar a liberdade que já temos.

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