quinta-feira, 18 de outubro de 2007

CARTESIANISMO






O que trabalha em casa, às horas que quer e sem ter ninguém a vigiá-lo, apenas regulado pela obra a fazer e a necessidade, não sabe até que ponto o trabalho próprio é feito pelos outros e contra os outros. E talvez que a disciplina patronal à moda antiga apenas quisesse cortar a influência do grupo, de modo a que o trabalhador contasse com todas as suas forças.
É a ideia da primeira burguesia industrial esta de somar indivíduos e de organizar a produção sem recorrer à psicologia. Foi preciso pôr em causa essa ordem mecânica para descobrir que o homem trabalha mais e melhor num bom clima humano e que os progressos da produtividade dependem tanto da técnica e da organização como das relações entre as pessoas.
Quando a disciplina se torna flexível, o sentido da responsabilidade é partilhado por muitos, mas sem os privilégios do poder. Por outro lado, a organização pode ser tão complicada que as pessoas se guiem apenas pelo seu temperamento, encontrando múltiplos recessos que escapam à cadeia dinâmica que dá vida à empresa. E é um paradoxo genuinamente burocrático esta situação do funcionário escondido pelos papéis. Esses redutos contrariam a lei da empresa e do trabalho colectivo. Mas não se vencem pela investida hierárquica.
A organização deficiente põe à prova o carácter do trabalhador. E não há melhor exercício da vontade e do autodomínio do que enfrentar quotidianamente a inércia dos outros e o seu comodismo. Porque o trabalho próprio passa a ser preocupação pelo trabalho dos que faltam, dos que passeiam ou simplesmente se relaxam no serviço. As tarefas deixam de ser coisas que se fazem sem pensar quase, para se tornarem sentimentos e emoções ferradas. Quem não perder a cabeça encontra aí o fogo que tempera. Sem procurar nenhuma vantagem material ou ideal, a força chega e o pensamento que de cada vez deve limpar as ideias da paixão sai mais robusto da prova.
Mas é bom de ver que o egoísmo dos que se limitam a assistir a esse esforço é mais propriamente medo de si próprio. De não saberem vencer o despeito e a raiva, de a cada momento se sentirem motivo de troça e não ser capaz o pensamento de deixar o tórax munido de espanador e do vento do espírito. É claro, porém, que a empresa não pode contar só com a boa-vontade. Por isso a disciplina e a autoridade regressam periodicamente, quando ao abuso do poder se seguem os excessos da liberdade – porque a verdadeira liberdade não é colectiva.
Organizar melhor os homens, de resto, é sempre submeter o indivíduo a um princípio exterior. O progresso é tornar cada vez menos pessoal a necessidade. Separar o espírito das coisas. É a lição de Descartes.

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