segunda-feira, 15 de outubro de 2007

DO ABUSO DO CLOROFÓRMIO


Marie Jean-Pierre Flourens (1794/1867)

"Mas mesmo se nos abstrairmos do facto que a única duvidosa vantagem é um enfraquecimento da memória que dura o tempo da intervenção, o desenvolvimento desta prática parece-me apresentar um outro sério risco. Dado que a formação universitária geral dos nossos médicos é cada vez mais superficial, a medicina poderia atrever-se - na sequência da utilização ilimitada deste remédio - a empreender intervenções cirúrgicas cada vez mais complicadas e difíceis. Em vez de efectuar experiências sobre animais para fazer progredir a ciência, transformará em cobaias os pacientes que nem sequer se aperceberão de nada."

(citado em "La raison dialectique" de Max Horkheimer e Theodor Adorno)


Esta é a transcrição de uma carta de Jean-Pierre Flourens, fisiologista francês, sobre a utilização do clorofórmio.

O seu principal argumento é o de que "na sequência geral da enervação, as dores são ressentidas ainda mais vivamente do que no estado normal. O público é iludido pelo facto do paciente ser incapaz de se recordar do que se passou, uma vez a operação terminada."

Mas o que é uma dor de que não nos lembramos?

Esta concepção do corpo inconsciente que não deixa de sofrer os traumatismos que o narcótico impede que atinjam a consciência pode, de facto, ser generalizada.

Os efeitos a longo prazo, por exemplo, de certas tecnologias, nomeadamente as que produzem radiações ainda não suficientemente estudadas, não deixarão de ser averbados ao nosso estado físico e mental, num futuro mais ou menos próximo, mesmo se actua sobre a consciência dos danos uma outra espécie de clorofórmio que é a habituação e a sugestão colectiva ou institucional.

E o que se diz sobre alguns avanços temerários da medicina poderiam ser aplicados, palavra por palavra, à ciência moderna. Tudo o que não se sente imediatamente como limite é como se não existisse.

Como dizem os autores, "a técnica médica e extra-médica tiram a sua força de tal cegueira: ela só terá sido possível graças ao esquecimento. A perda da memória como condição transcendental da ciência. Toda a reificação é um esquecimento."

2 comentários:

Andréia Delmaschio disse...

Aquilo que ouvi enquanto me "operavam" (operar, no aurélio: executar; obrar) me assombrou para sempre. Não fui submetida a muitas intervenções cirúrgicas, mas deu para notar que o medo pálido que senti enquanto a maca era empurrada em direção ao desconhecido é uma bobagem, se comparado ao horror que experimentei depois, ao escutar da boca dos operadores, enquanto cortavam e costuravam, considerações sarcásticas sobre o que retiravam do que era, ali, o corpo de um estranho. Durante a ação, notavelmente repetida centenas de vezes, pululam os relatos de antigas façanhas e as anedotas sem graça, repetidas no tédio de um trabalho cansativo (muito mais sujo e quase tão pesado quanto o das estivas), iniciam-se as recomendações de restaurantes e marcas de vinho, mas isso ainda não é nada se comparado ao modo totalmente desafetado como se referem a casos tenebrosos, recém-passados por ou ainda por vir. São frases que caem na mente anestesiada como sentenças, porque afinal estamos nas mãos de deuses que naquele instante nos recriam; somos fantoches inertes em meio a aparelhos cortantes, de frios e a máquinas ininteligíveis e distantes de nossas mãos, invariavelmente atadas à maca. Quando nos anestesiam, transformam-se curiosamente em zumbis.

andréia disse...

Aquilo que ouvi enquanto me "operavam" (operar, no aurélio: executar; obrar) me assombrou para sempre. Não fui submetida a muitas intervenções cirúrgicas, mas deu para notar que o medo pálido que senti enquanto a maca era empurrada em direção ao desconhecido é uma bobagem, se comparado ao horror que experimentei depois, ao escutar da boca dos operadores, enquanto cortavam e costuravam, considerações sarcásticas sobre o que retiravam do que era, ali, o corpo de um estranho. Durante a ação, notavelmente repetida centenas de vezes, pululam os relatos de antigas façanhas e as anedotas sem graça, repetidas no tédio de um trabalho cansativo (muito mais sujo e quase tão pesado quanto o das estivas), iniciam-se as recomendações de restaurantes e marcas de vinho, mas isso ainda não é nada se comparado ao modo totalmente desafetado como se referem a casos tenebrosos, recém-passados por ou ainda por vir. São frases que caem na mente anestesiada como sentenças, porque afinal estamos nas mãos de deuses que naquele instante nos recriam; somos fantoches inertes em meio a aparelhos cortantes, de frios e a máquinas ininteligíveis e distantes de nossas mãos, invariavelmente atadas à maca. Quando nos anestesiam, transformam-se curiosamente em zumbis.