terça-feira, 14 de novembro de 2017

FRANÇOISE




"(...) ela tinha conservado da sua infância duas particularidades que podia parecer deverem excluir-se, mas que quando se encontram reunidas, se fortificam: a falta de educação da gente do povo que não procura dissimular a impressão, e até o doloroso alarme nelas causado pela visão de uma mudança física que seria mais delicado parecer não notar, e a rudeza insensível da camponesa que arranca as asas das libélulas antes que tenha ocasião de torcer o pescoço dos frangos e a quem falta o pudor que lhe faria esconder o interesse que lhe despertava ver o corpo que sofre."
"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Proust descreve a reacção da velha criada Françoise ao ver entrar, desfigurada pelo ataque de que acabava de ser acometida, a avó do narrador. E frisa que esta aparente insensibilidade não era devida à falta de amor pela doente, de quem, pelo contrário, muito gostava.

Marcel pode, assim, observar as duas atitudes opostas, ditadas por códigos de classe diferentes na forma de lidar com o sofrimento ou a diminuição do outro. A filha, evitando olhar o rosto devastado da mãe para não lhe transmitir a sua própria aflição e a da criada, cuja indiscrição revela toda uma outra "política": a das chamadas verdades da vida, ao mesmo tempo que isso lhe permite assumir a impassibilidade que a outra atitude procura pela esquiva e pelo pudor.

A curiosidade de Françoise, por outro lado, não está isenta de uma nuance de crueldade e de filosófico desagravo. Como boa católica, podia ver a justiça dos Céus repor nesse momento uma igualdade que a sociedade não cessava de desmentir.

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