sábado, 21 de outubro de 2006

NA RUA DAS MINAS




Da rua das Minas, a igreja de S. Pedro da Cova destaca-se à frente do seu exército de mortos no fundo verde dos campos. Nesse reduto, o templo não parece ameaçado pela perda da fé e crise das vocações, nem a horda medieval das motorizadas significa, a julgar pela bela imobilidade e o mármore obsceno das campas, mais do que um moderno interlúdio ou os transitórios sinais da juventude, indómita como deve ser.

É bem verdade que o poder da igreja é o da compreensão da morte. E enquanto o homem for sujeito a paixões, o medo dos medos há-de alimentar a sotaina e encher os consultórios. O que se vê é, além disso, concorrerem todas as forças para uma falsa resolução das paixões, de modo que as pessoas encaram cada vez menos a morte como um problema pessoal que define a atitude perante a vida, para esperarem da sociedade de consumo a resposta industrial ao perfil da sua angústia.

Circunscrito, logo atrás do campanário, o pequeno cemitério exibe a morte talhada das lajes, numerada num livro de entradas e saídas, como se a decomposição e horror da forma descessem ao magma original. A razão impera entre os cabeçalhos que foram túmulos por um momento. Sob o céu meridional, o espectáculo edificante entre todos dir-se-ia anular radicalmente o cadáver. Reunidos numa comunidade de escrita debaixo da protecção do livro milenário, os mortos são já espírito pela virtude das flores e do contraste.

Quem passa pelo lugar da não-vida povoa o caminho de sombras e de sussurros. Por isso, os rapazes que fazem festa no adro, esquecidos do lado dos ciprestes, cobiçando as raparigas, tagarelando, são ainda sabiamente dirigidos pela religião. Todo o movimento da liberdade e da saúde é um contraponto que a perspectiva oferece ao meu pensamento.

O cemitério é como essas formas insidiosas da publicidade moderna. Reunir num só local os mortos é criar um poder simbólico de enorme eficácia prática. Os ritos funerários são apenas uma introdução ao poder. Excluído da cidade, camuflado em parque municipal ou ermo maldito de Las Hurdes, o cemitério faz de cada um de nós um devedor perante os mortos. Devemos-lhes a vitalidade e a alegria dos imortais. Que espantoso operador de eternidade e de desejo da vida, o soalho das igrejas barrocas!

Esta memória é contudo vulnerável ao vírus da idade moderna. A incineração não é o verdadeiro ataque. Ela é um mata-borrão que seca um nome mais depressa. Não. O que é de temer é a própria falta de “razão” para perpetuar o culto dos mortos sob que forma for. A morte volátil. Então creio bem que haverá uma ligação directa entre a sacristia e o luna-parque.

Como era verde S. Pedro da Cova!

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