quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O SILÊNCIO DE CATÃO



Nunca se é rigoroso e absolutamente isento num conflito humano. Nem os que julgam de fora podem compreender. Mas ao juiz não convém interessar-se no drama das paixões, e assim ele decide, no melhor dos casos, condenando sempre o animal. Porque a paz não pode deixar de vir quando se pensa bem. Não há interesses que resistam à felicidade do acordo entre pensantes.
Quando há dias um comunicado acusou um grupo privilegiado da profissão de ir comer ao restaurante à custa da empresa, em vez de utilizar a cantina, isso deu lugar a um movimento da parte deles com todo o aspecto da indignação. O seu contra-ataque baseou-se todo na falta de rigor do comunicado: não tinham sido só eles, e a responsabilidade era do director. Mas isso permitia-lhes dizer que a afirmação era rotundamente falsa. Porém, o facto da despesa inútil e da diferença de tratamento permanece como antes.
O privilégio tem sempre uma sanção do poder. E o que distingue esta liberalidade, concedida a quem já goza de mais regalias do que os outros, dum direito particular é não estar inserida num sistema escrito, ou consensual. A ordem de serviço justifica, mesmo quando é um diktate. E sobretudo transfere para um plano político e abstracto a oposição entre pessoas. Os que recebem os favores podem assumir o ar mais inocente debaixo duma guerra de palavras à volta dos princípios. Mas esta acusação mostrou o privilegiado como se tomasse a iniciativa. É faltar à regra do jogo.
E o que eu observo é a adesão geral a esse sistema, apesar de tantos que resmungam. O capitalismo submete estes frouxos defensores da igualdade, não pela atracção do dinheiro, mas pelo lado mais necessário. Ao mesmo tempo que verberam a corrupção duma parte da classe, não deixam de desejar que a sua empresa vença a prova da concorrência pelos métodos do capitalismo selvagem, se preciso for. É essa contradição que reduz a denúncia moral a um exercício de retórica.
Só quando o homem se dispõe a perder tudo é que a verdade aparece nua. Os esforços para fazer reinar a virtude neste meio são como estender a mão para deter um comboio em marcha. O pior seria que nos enganassem os vícios aparentes. Porque é por causa de alguma virtude que a sociedade dos homens é possível. E que sentido tem dizer que o espectáculo é a depravação geral e o amor do dinheiro, se não é para concluir que a justiça é possível e urgente? Apesar dos progressos da tecnologia e do poder do Estado, temos felizmente de reconhecer que o homem é o animal de sempre. Isso permite toda a esperança, se buscarmos a sabedoria antiga e de todas as épocas.
Por isso, se eu fosse juiz, tinha de condenar um comunicado que agitasse os espíritos em vez de esclarecê-los. O silêncio de Catão vale mais do que a sua cólera.

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