terça-feira, 26 de setembro de 2017

A ACTUALIDADE DOS ESPECTROS

Karl Marx (1818/1883)


"Os homens fazem a sua própria história (ihre eigene Geschichte), mas não a fazem espontaneamente (aus freien Stücken), nem nas condições escolhidas por eles só, mas antes nas condições que encontram, aquelas que lhes foram dadas e transmitidas (überlieferten Umständen). A tradição de todas as gerações mortas (aller toten Geschlechter) pesa (lastet) com uma carga muito pesada sobre o cérebro dos vivos [Marx diz:"lastet wie ein Alp", quer dizer "pesa à maneira de um fantasma", um dos seres espectrais que dão pesadelos (...)]. E mesmo quando parecem ocupados a se transformarem, a eles e às coisas, a criar alguma coisa de completamente novo (noch nicht Dagewesenes zu schaffen), é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que eles evocam [conjuram, precisamente, beschwören] temerosamente os espíritos do passado ( beschwören sie ängstlich die Geister der Vergangenheit zu ihrem Dienste herauf ), que eles lhes pedem emprestados (entlehnen) os seus nomes, as suas palavras de ordem (Schlachtparole), os seus trajes, para aparecer na nova cena da história sob esse disfarce respeitável e com a linguagem emprestada (mit dieser erborgten Sprache),"

"Le dix-huit Brumaire de Louis Bonaparte" (Karl Marx, comentado por Jacques Derrida em "Spectres de Marx")

Este dístico, apesar da ruína que atingiu o resto do edifício, tem ainda hoje um ar lavado e actual. E, reflectindo a verdade de uma continuidade entre o passado e o presente (não só sob o aspecto material, mas da própria subjectividade) parece infirmar o próprio conceito de Revolução, o qual, a partir da Revolução Francesa, ganhou o sentido de uma tabula rasa sobre o passado. Mas é o próprio Marx, noutro passo, que reivindica para as revoluções do futuro (depois do século XIX) a libertação dos "espíritos do passado" e do recurso a uma linguagem emprestada, consequentemente, de resto, com a nova fé no materialismo histórico.

Depois havia aquela curiosa necessidade de uma máscara respeitável, como se vigorasse a velha tradição platónica de, em política, não se poder prescindir dos mitos, nem transpor o fosso entre a elite dos que sabem para onde vão e a massa anónima que deve ser "levada", como um animal susceptível de movimentos bruscos e perigosos.

Claro que Marx não se refere naquele trecho a uma hipocrisia implícita dos agentes, mas à sua falta de liberdade. Se tanto a vanguarda quanto a massa pudessem assumir plenamente o que são, com nomes que nunca se viram e um discurso nunca antes ouvido, é provável que ninguém se entendesse.

E talvez que a necessidade de todos os actores falarem a mesma linguagem seja o princípio do descaminho.

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