sábado, 2 de dezembro de 2006

O CAMPONÊS DEBAIXO DA CHUVA


"Ana Karenina"

Esta chuva faz-me sentir como o Levin de “Ana Karenina”. O som tão doce que embala a minha vigília deve dar olhos a muita choupana. Rejubilo como se fosse um camponês e tivesse já feito muitas preces. A meteorologia talvez acabe com uma religião, mas a chuva, quando tão esperada, não deixa de ser uma divina surpresa.

Não tenho que vigiar o trabalho das minhas mãos e depois a gestação da terra e tanta coisa imprevisível. O camponês define aquilo que não sou. Um corpo que se reparte em frutos mediante um rito misterioso, eis o que o suor humano e a charrua escondem. Este trabalhador é um oficiante musculado. A sua actividade é a mais necessária e a menos suficiente. O seu esforço é pôr a terra a jeito. Não saem formas da sua habilidade, mas favores dos deuses. Não há nada que substitua a atenção pelo próprio corpo. Um gestor não dá mais do que o contrato. Adivinhar a sede e o frio, antecipar-se ao vento e à doença, são coisas de quem vive ligado aos elementos, como uma antena.

É assim com os homens que naquilo que verdadeiramente importa o zelo é exclusivo e pessoal, ou não é nada. Isso pode-se ver pelo menor cuidado que passamos a ter com a nossa saúde, quando se seguem as prescrições do médico. A atenção que nos inspira o corpo saudável e jovem está toda posta na acção e na harmonia. Não se dá a conhecer a força que nos transporta. Mas instale-se a dúvida sobre essa bela saúde, o que é um pensamento da idade, e facilmente caímos num mórbido estado de apreensão. Mais vale então recuperar a indiferença possível na garantia do médico que é suposto conhecer da vida e da morte. Também a terra entregue às suas disposições espontâneas é incompreensível. O homem vem a ausculta-a, corta, separa, reúne o que estava espalhado. Ele simula a acção do acaso e modifica quantidades e espécies. A geometria e o estudo dos astros permitem-lhe pensar o seu trabalho e futurar.

O camponês e o seu pedaço de terra formam um ser semi-consciente. O humano ignora tanto do seu próprio corpo como da alquimia terrestre, mas os frutos podem contar-se. Essa unidade faz com que a atenção se vire toda para a terra paciente e mártir. Todo o simbolismo nutricial e da morte, consoladora como a mãe, se envolve neste apego ao chão e à sua cerca do homem do campo. Por isso, o sócio ou o patrão devolvem o camponês à sua forma humana mais pobre. A exploração intensiva de grandes espaços para alimentar a multidão das cidades não se condói dos sentimentos ingénuos. A multiplicação do homem mais uma vez parece justificar o salto no desconhecido. Perdem-se as raízes, e o homem nunca foi tão livre para nada.

Tem o sabor da utopia este presente, no entanto, bem real. Com a água que cai do céu, enfim, todos somos um pouco homens do campo preocupados com as sementeiras e a cultura.

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