sexta-feira, 9 de setembro de 2005

O DIREITO ÀS PERSIANAS

Evgueni Zamiatine





Devo a um dos blogs que mais aprecio o conhecimento de Evgueni Zamiatine (1884/1937), emigrado russo que escreveu em 1920, na aurora duma época que para tantos significava a realização da Utopia, “Nós”, uma distopia que mergulha no mais negro pessimismo.

Percursor de Huxley e Orwell, mas por sua vez influenciado pela ficção de H.G.Wells, Zamiatine extrapolou para o ano 3000 (um salto mais prudente do que o de Orwell, em “1984”), a tendência que julgava já visível na sociedade bolchevique e que, no seu entender, corresponderia, mais do que a uma lei social e política, a uma lei do cosmos (“A história do mais importante”).

O método para nos confrontar com a “alienação” do indivíduo inteiramente submetido ao poder do Estado é o da inversão do sentimento. O polícia que nos causaria horror e revolta, por exemplo, é-nos apresentado na mais natural das missões, inspirada pela benevolência sem limites do poder:

“É muito agradável sentir o olhar vigilante de alguém sobre o nosso ombro, alguém que está ali para evitar que dêmos um mau passo, que façamos disparates. Pode ter o seu quê de sentimental, mas penso sempre na mesma analogia: a dos anjos da guarda com quem os antigos costumavam sonhar. Quantas das coisas com que eles se limitavam a sonhar se materializaram na nossa vida!”
 
Outra intuição luminosa:
O indivíduo, quando “uma alma se forma dentro de si” só pode meter baixa, como dizemos. Se o pensamento é o crime por excelência, resta-lhe adoecer ou fingir que adoece, e opor à razão infalível do “Big Brother” a Criação. A proposição do corpo é uma maneira de invocar Deus. E o médico é Hermes Psicopompo, Condutor de Almas, que estabelece a comunicação entre os dois mundos. É o relé da subversão.

Ainda vou a meio, mas já encontrei coisas deliciosas, como esse “direito às persianas” (num mundo em que tudo se devia fazer diante dos outros), que só podia ser requisitado no “Dia Sexual”, também ele controlado por um cupão.

2 comentários:

camponesa pragmática disse...

É extraordinário, não é? Achei-o muito mais assustador que o "1984", que o "Admirável Mundo Novo" e que o "Fahrenheit 451". Parece-me que devo seguir viagem para o passado.
Quanto às razões do meu susto não as quero repetir porque naquela semana em que li o livro e as expressei fiquei muito deprimida. Fiquei mesmo triste. heheh Regressarei aos sublinhados daqui a um mês ou assim, quero ganhar alento entretanto.

Nunca nenhum livro me tinha conseguido colocar de forma tão intensa na perspectiva daqueles que atacam o pensamento. E todas as interrogações que contra mim mesma, irresistivelmente, coloquei, deixaram-me desanimada. A força das perguntas contra o pensamento, a forma como é impossível fugir-lhes (se estamos a pensar numa escala de centenas de anos e embalados numa ideia de durabilidade humana), tornaram a leitura violenta.

Saudações.

José Ames disse...

Temos o dever de não desesperar.

Quanto ao livro de Ziamatine, confesso
que última parte me pareceu escrita de afogadilho.

Será possível transmitir a ideia descurando a forma?